terça-feira, 9 de setembro de 2008

Apontamentos dispersos

Sabes, não encontro Deus em lado nenhum
Mas gosto das doses fatais da poesia, dos venenos naturais
A que me obriga a solidão.

Tempos houveram em que habitávamos o sol
E eu sentia-me capaz, com um relâmpago na língua, de vociferar
De esclarecer, de experimentar a longitude dos outros

Cinge-se de grandes sombras a rua deserta

Gosto do abismo precário da flor em gestação, da noite
Com seus gestos de cinza primitiva e o vácuo: sémen obscuro,
E o sentimento de poder acabar com isto e com tudo.

Cinge-se de grandes sombras a rua deserta

Dizem que me deito sempre do mesmo lado, no lado profano,
No leito diagonal da precariedade e as lágrimas que verto
Não passam de cenas frias de um filme inacabado.

Cinge-se de grandes sombras a rua deserta

Não, nunca senti deus na luz nervosa, na assembleia matutina
Dos pássaros, tão pouco me levanto às alucinações diurnas
Às imagens folclóricas do tempo.

Cinge-se de grandes sombras a rua deserta

Sujo meus olhos de poeira nativa, de encontros inesperados,
Aqui todos habitamos a mesma rua vazia
Com os mesmos utensílios de escavar o silêncio e a dor.

Cinge-se de grandes sombras a rua deserta

A poesia é mais uma forma de dar forma ao invisível,
O paraíso silábico, o medo filiado no peito. Perturba-me
A noite, o transe das metáforas, o metal dos astros caídos
E tudo me acompanha na sede do engano e da ilusão…

Cinge-se de grandes sombras a rua deserta.


Ricardo Pereira

Sem comentários: